Depois de quase 4 meses em exposição, a obra CAOS, do artista Eduardo Srur, passou por uma transformação radical no última dia 10 de dezembro, tornando-se praticamente um novo trabalho. O que antes eram 2 blocos enormes de carrinhos coloridos e presos de forma caótica uns sobre os outros, passou a ser uma enorme instalação no chão, com os carrinhos na mais perfeita ordem, lado a lado, fileira após fileira, lembrando o pátio cheio das montadoras. E assim, numa formação sem nenhum caos, veio o grand finale: quando o museu abriu suas portas no dia seguinte, cada um dos visitantes pôde pegar um dos carrinhos e levar para casa um pedaço da obra autografada pelo próprio Srur, que recebeu o público desde as primeiras horas.
A Blombô acompanhou de perto e com exclusividade esses dois dias de transformação do CAOS. Vimos a instalação tomar sua nova forma durante a tarde de segunda-feira e a chegada do público no dia seguinte. O artista acreditava que a primeira pessoa a levar um carrinho fosse uma criança, mas quem apareceu por lá pouco antes do horário de abertura do museu foi um senhor todo sorridente, dizendo que foi até lá especialmente para garantir seu pedacinho de obra. Pela alegria dele, e com risco de parecer piegas, nosso testemunho é de que Srur acertou na previsão. E durante o dia todo pessoas de todas as idades, classes sociais, a passeio ou a trabalho, transitaram pelo MAC e testemunharam o destino final da obra. A resposta do público foi tão grande que os cerca de 6 mil carrinhos acabaram no mesmo dia.
Entre pilhas coloridas dos carrinhos espalhados pelo chão e em meio ao barulho vindo do trânsito caótico da Avenida Pedro Álvares Cabral (que trilha sonora poderia ser mais perfeita?), batemos um papo com o artista durante a tarde de segunda-feira.
Desde o início a obra foi pensada para ser colocada no MAC USP?
Eduardo Srur: Não, não foi. Primeiro surgiu um convite do Waze para criar uma obra inédita que tratasse da questão da mobilidade urbana. Eu quis então revisitar minha trajetória e ver se eu encontrava alguma pista em relação a isto e resgatei uma obra de começo de carreira que se chama Pachamama, composta por carrinhos de cerâmica que eu produzi na faculdade. Na ocasião fiz cerca de 400, que foram colocados numa disposição como você está vendo hoje (na nova forma da instalação, tipo “pátio de montadora”)). Depois os levei para a praia e fiz um dos meus primeiros experimentos nos anos 1990, uma composição com eles alinhados até sumirem no horizonte da praia.
A primeira proposta era de que a instalação ficasse no Mirante 9 de Julho, numa outra composição. Seria um paredão de carros colocados de maneira a bloquear a vista da Avenida 9 de Julho para quem estivesse no Mirante. Depois é que surgiu a negociação com o MAC USP, quando vim analisar o espaço e a arquitetura e ter uma visão de como poderia montar a obra. Dentro do que eu tinha disponível de recursos e de prazo, tive a ideia de criar os 2 blocos compostos por milhares de carrinhos, de forma que o público transitasse no meio dessas paredes e tivesse a sensação de confinamento, de aprisionamento causado pelo trânsito e, ao mesmo tempo, trouxesse do meu início de carreira esse aspecto lúdico e super colorido da minha produção, que é pop. E eu fiz essas 2 paredes na entrada para que o público que viesse visitar o museu tivesse um último respiro antes de imergir no caos da cidade, saindo desse ambiente sagrado. O nome da obra é CAOS pois o aglomerado de carrinhos remete imediatamente ao trânsito caótico que estamos sempre querendo resolver em São Paulo e que não vai ter uma solução simples.
Como foi para você exibir sua obra dentro de uma instituição?
Eduardo Srur: Acho que são 2 campos (instituição e intervenções urbanas) que se conversam . Eu tenho essa visão ampliada da minha obra poder estar em qualquer lugar do espaço público da cidade, inclusive me especializei em grandes operações de intervenção urbana em espaços não convencionais, mas esta não é a primeira vez que exponho numa instituição. Costumo expor mais em instituições fora do Brasil, porque aqui acontece a tendência de as instituições prestarem atenção nos artistas brasileiros depois que eles dão certo lá fora [risos]. Mas, de qualquer maneira, estar num museu é uma situação muito confortável porque, ao mesmo tempo em que eu tenho a aura de proteção do espaço institucional ao redor do trabalho, a instalação atinge o público da maneira que eu gosto, com o efeito surpresa de receber essa informação quando ainda está chegando ao museu.
As crianças ficaram especialmente fascinadas com a obra, vendo os carrinhos de brinquedo coloridos. Você imaginava que fosse acontecer isso? Acha que a mensagem chegou aonde você queria ou aconteceu diferente do que esperava?
Eduardo Srur: Acho que a mensagem chegou exatamente como previsto, teve muita aderência, compreensão, muita interação. É uma obra que permite o touch. Estamos falando de crianças e elas não gostam de ir ao museu porque não podem tocar em nada, não podem fazer barulho, não podem brincar. Esse trabalho provocava a participação do público e vai provocar mais ainda com a nova composição, que vai permitir levar um fragmento dela para casa. Meu trabalho cumpre bem a tarefa de aproximar as futuras gerações do entendimento do campo artístico, o que não quer dizer que esteja sendo reduzida para as crianças. Sol Lewitt dizia que o artista tem que ser inteligente o suficiente para não ser intelectual demais.
Por que você quer que o público leve a obra?
Eduardo Srur: Porque eu não tenho onde guardar! [risos]. A grande potência da obra está por vir e será amanhã [a entrevista foi feita na segunda-feira 10/12/18, véspera da abertura do museu com a nova configuração da obra], porque isso (a doação ao público) não estava previsto. No projeto inicial ela continuaria no mesmo formato até o último dia. Mas a partir do momento em que eu percebo que o público quer a obra e eu tenho a capacidade de doa-la, acho que as 2 pontas se encontram de maneira muito democrática. Então esse meu trabalho vai ter um destino tão democrático quanto as minhas intervenções na cidade, que atingem todos os públicos, de diferentes faixas etárias, de diferentes capacidades intelectuais. Assim como Helio Oiticica, Joseph Beuys e (Marcel) Duchamp falavam, eu sempre defendi muito que a obra se completa no intelecto do expectador; sem ele a obra não existe. Eu levo isso às últimas consequências, permitindo que o público leve um fragmento da obra para casa o que, além de ser um ato generoso no sentido de presentear uma parte da população, deixa evidente meu interesse em aproximar o público e provoca-lo a ser mais participativo e compartilhar o processo criativo comigo.
E agora, compartilhando, continua sendo um CAOS?
Eduardo Srur: Espero que não! Vamos descobrir o que vai acontecer amanhã (terça-feira, 11/12/18). Tomamos algumas providências para que não seja um caos e que tudo transcorra bem, mas sempre há os subversivos como eu, que talvez queiram fazer algumas coisas não previstas. Os meus melhores trabalhos sempre foram justamente os que me geraram imprevisibilidade, coisas não imaginadas e uma das mágicas da intervenção é justamente essa, você começar a obra de uma maneira e não saber como vai terminar. Não acho que seja o caso aqui porque, conforme falamos, estamos dentro do espaço seguro do museu. Mas só conheceremos o CAOS amanhã.
Epílogo: não foi um caos! Apareceram os talvez mais subversivos, que tentaram encher sacolas e mais sacolas com carrinhos, sabe-se lá por qual razão; outros tentaram levar mais de um, alegando ciúmes de quem estava em casa e não poderia ir. Mas, no geral, o público respondeu ao pedido do artista, pegou apenas o seu e assim dividiu a obra o mais democraticamente possível.